terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O FIM DA AMAZÔNIA


23/12/2015 18:49
 LÚCIO FLÁVIO PINTO
 
Há exatamente 30 anos, em 1985, o então presidente José Sarney fez a sua primeira visita à Amazônia. Foi ver o primeiro projeto de mineração a entrar em operação no Pará, a mina de bauxita da Mineração Rio do Norte, uma das maiores do mundo. Para pousar na pista do núcleo residencial de Porto Trombetas, o avião presidencial precisou passar por cima do lago Batata.
A visão foi constrangedora. Quase 20% da superfície líquida se tornara sólida, aterrada pelos rejeitos da lavagem do minério, que eram depositados no lago porque a mineradora não construíra uma bacia própria de deposição. O Batata, um dos maiores lagos que margeiam o grande rio, afluente da margem esquerda do Amazonas, estava sendo destruído sem clemência. O volume despejado até aquele momento correspondia à lavra de apenas uma década e meia.
A imagem chocou quem assistiu à exibição da reportagem sobre a visita, feita pela TV Globo, ecoando pelo mundo. A paisagem transformada do lago se parecia mais com Marte do que com a Terra, por sua coloração vermelha e o desaparecimento de toda forma de vida no local, dos peixes às plantas. Se dependesse da mineradora, que era controlada pela ainda estatal Companhia Vale do Rio Doce, associada a várias das multinacionais do ciclo do alumínio, o Batata estava condenado à morte.
Uma condenação absurda. Não só pelo aspecto ecológico: também pelo econômico. A MRN construiu uma ferrovia para transportar o minério por 30 quilômetros, da jazida até o porto privativo. Mas um terço da carga era rejeito, que só seria descartado no ponto de lavagem, à beira do rio. Além da lama vermelha, o processo produtivo gerava um pó da mesma cor, expelido pela chaminé, sem filtro, que cobria tudo.
A bauxita era lavada e depois seca porque parte da produção ia (e ainda vai) para o Canadá, local de origem da Alcan, que por alguns anos foi a única proprietária do projeto, até a CVRD se incorporar ao empreendimento para que ele pudesse ser retomado. O minério precisava ser seco para não congelar no porão dos navios que chegavam ao Canadá no inverno.
O forno de secagem do minério era alimentado de madeira, extraída arbitrariamente de uma área que seria inundada pela barragem da hidrelétrica do Trombetas. A usina não saiu até hoje, mas o ex-quase-futuro reservatório foi limpo e as árvores se transformaram em lenha até o alerta de que se tratava de um desmatamento absurdo.
O alerta veio através da repercussão internacional das imagens do lago, que desnudavam a aparência de normalidade da mineração. Desde o início a extração da bauxita devia ter um depósito de rejeito e o ponto de lavagem de minério no alto da serra, sem que o trem precisasse transportar (com ônus ambiental e econômico) material estéril num percurso de 30 quilômetros, para descartá-lo nas belas drenagens naturais da região de Oriximiná.
A partir da reação, a Rio do Norte fez uma inovação: passou a depositar o rejeito em buracos que abriu ao lado da mina e a recobri-los com terra vegetal para replantar as espécies nativas da floresta que derrubou, recompondo assim a paisagem. Foi a primeira aplicação à lavra de bauxita de uma técnica usada para uma atividade em menor escala, a lavra de fosfato nos Estados Unidos.
O erro inicial estava corrigido, mas não teria havido as mudanças sem pressão externa. Quanto custou a falta de iniciativa da própria mineradora? Nenhum cálculo foi feito na época e até agora. Mas uma ideia atualizada pode ser estabelecida a partir da constatação de que a cada ano a MRN descarta mais de cinco milhões de toneladas de material estéril.
Significa que, em 10 anos, terá produzido tanta lama de rejeito quanto a Samarco acumulou nas duas barragens que se romperam e provocaram a maior tragédia ambiental da mineração no Brasil. E a Rio do Norte já tem 30 anos de operação comercial, a mais antiga mineradora no novo ciclo da atividade, iniciado 60 anos atrás com a lavra de manganês no Amapá por outra multinacional, a siderúrgica americana Bethlehem Steel, em sociedade com o grupo empresarial de Augusto Trajano Antunes.
Essa muito mal conhecida história ensina que é inconfiável o compromisso das empresas de mineração de prevenir – ao máximo possível pela tecnologia disponível – os acidentes inerentes à sua atividade e minorar ao máximo os efeitos deles quando ocorrem por um acidente completamente fora do controle. A tragédia de Mariana não deixa dúvida, qualquer que tenha sido a causa do rompimento dos diques de contenção do rejeito da pelotização (agregação em pelotas) do minério de ferro, sobre um ponto: a negligência da Samarco, na qual a antiga CVRD (privatizada há quase 20 anos) tem metade das ações, em parceria com a anglo-australiana BHP-Billiton.
A empresa não respeitou o limite de segurança recomendado para reter os 50 milhões de toneladas de rejeitos que vazaram nem dispunha de uma alternativa segura para um acidente. O plano que elaborou não estava à altura do risco que um rompimento causaria à área situada abaixo das duas barragens que entraram em colapso. Daí a gravidade e extensão do dano que causou e dos prejuízos, que ainda nem foram exatamente calculados. O que já foi apurado, no entanto, é o bastante para que a sociedade brasileira se comprometa em dar um basta ao livre arbítrio das empresas de mineração (assim como das demais que possuem barragens, como as de energia) e obrigue o governo a sair da sua inércia, omissão ou incompetência, mais graves até do que a irresponsabilidade desses setores da iniciativa privada. Com um agravante: a Samarco é considerada como uma das melhores do setor. Como será a pior?
Uma resposta segura exige uma revisão rigorosa da situação das frentes econômicas que avançam sobre novas fronteiras na Amazônia, em particular no Pará. Há boas notícias no front, mas elas precisam ser relativizadas em função da dinâmica da ocupação da região, que ainda é marcantemente predatória e irracional. O Imazon, uma das mais ativas instituições de pesquisas amazônicas, apresentou uma dessas notícias, imediatamente comemorada, como aconteceu por ocasião da recente visita a Belém do príncipe herdeiro do trono japonês.
O Instituto do Homem e do Meio Ambiente constatou que 230 quilômetros quadrados (ou 23 mil hectares) foram desmatados na Amazônia Legal no mês passado. Houve redução de 5% em relação a outubro de 2014, quando o desmatamento somou 244 quilômetros quadrados. Já a área degradada de florestas foi muito maior, alcançando 1.009 km2, com incremento de 115% em relação a outubro de 2015, quando a degradação somou 468 km2.
A notícia é boa, mas não tão boa quanto parece. Primeiro, porque a derrubada de mata nativa prossegue, desfazendo a esperança quanto à viabilidade do tão apregoado desmatamento zero. Invariavelmente, a floresta virgem é substituída por cultivos de valor inferior e sem o mesmo desempenho ecológico.
Em segundo lugar, porque o corte raso, geralmente feito para a implantação de fazendas de gado ou plantio de culturas comerciais, como a soja, foi substituído pelo corte seletivo de madeira, que, mantendo a copa das árvores, não é registrado pelos satélites e camufla as estatísticas de desmatamento e degradação.
Mesmo quando ambas as agressões se reduzem ou desaparecem, não há muita razão para a comemoração. O Pará, onde o desmatamento diminuiu, a liberação de gases de efeito estufa é maior porque crescem as queimadas em áreas já alteradas. Por isso o Estado é o líder da região. Significa que a atividade humana se alterou numa fronteira já mais densamente ocupada. No entanto, segue a mesma diretriz em uma nova fronteira, como a do Amazonas, que abrigou 16% do desmatamento constatado em outubro, um índice elevado se comparado aos 29% de Mato Grosso, 26% de Rondônia e 24% do Pará.
O Estado da propaganda ecológica desencadeada pelo ex-governador e atual ministro (das minas e energia) Eduardo Braga desmorona, o que se evidencia ainda mais pelo índice de desmatamento, de 2%, do vizinho Roraima. O pioneiro que devastou os vales do Araguaia, Tocantins e Xingu chega com os mesmos procedimentos ao vale do rio Madeira. Por isso, a Amazônia continua a sofrer – e a desaparecer.
O resto é ingenuidade. Ou, então, propaganda.

A fotografia do desmatamento em Beruri (AM) e que ilustra esse artigo é de Albert César Araújo.
 
Lúcio Flávio Pinto é jornalista, sociólogo, formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém/PA desde 1987. Lançou recentemente o site Amazônia Hoje e blog Cabanagem. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, “Guerra Amazônica”, “Jornalismo na linha de tiro” e “Contra o Poder”. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras. 

ENTREGA DE FAIXA AO CAMPEÃO DOS CAMPEÕES

O REAL da comunidade Muirapinima foi o grande campeão do Campeonato Copa dos Campeões/15, promovido pela Associação das Comunidades da Região de Juruti Velho - Arcojuve, através da direção de Esporte Cultura e Lazer. A equipe venceu o Bota Fogo da comunidade Prudente nos pênaltis de 5 a 4 no campo da comunidade Muirapinima.

No dia 09 de janeiro acontecerá o torneio de entrega de faixa ao vencedor, a equipe adversaria será formada por uma seleção de craques que se destacaram durante a copa dos campeões oriundos de equipes das comunidades.

  ASCOM ACORJUVE

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

COSTURANDO RELAÇÕES

 
 

O Projeto Costurando Relações nos últimos anos tem capacitado mulheres do PAE Juruti Velho com um olhar atento a diversidade cultural retratado pela arte e criatividade materializada nos produtos criados pelas participantes dos cursos oferecidos pela ACORJUVE.
Levando em conta que o artesanato é um setor da economia cujo crescimento possui alto potencial de geração de trabalho e renda, merecendo uma política de desenvolvimento sustentável voltada para o setor, é que a ACORJUVE tem mantido  especial olhar as suas associadas  através do projeto Costurando Relações estimulado o resgate das vocações pela costura, levando à preservação da cultura local e à formação de uma mentalidade empreendedora, por meio da capacitação destas associadas. O padrão de qualidade e a capacidade de produção são alguns dos fatores que determinam a aceitação destes produtos no mercado.
O projeto Costurando relações foi criado em 2012, através da formação e capacitação de militantes da Igreja Católica e membros da ACORJUVE através da Caritas Diocesana de Óbidos, hoje mais de 330 mulheres receberam formação através do projeto e contribuem na geração de renda de suas famílias.
Neste mês de janeiro mais 04 cursos serão oferecidos e a meta é capacitar 40 mulheres através das oficinas de confecções de calcinhas e cuecas, confecções de bolsas ecologicamente corretas, camisas de meias e roupas infantis, o projeto conta com o monitoramento de mulheres associadas a entidade e capacitadas pelo projeto.  
 
 

CONSELHO REUNE PARA ELABORAR RESPOSTA A DOCUMENTO AO MP

Foto de Acorjuve Juruti Velho.Aconteceu hoje sábado, (19) reunião do conselho Fiscal Comunitário, Diretoria e Assessoria da Acorjuve, com objetivo de socializar as negociações entre ALCOA, ACORJUVE, INCRA, MPE na reunião bilateral realizada em Belém, no mês de setembro, ocasião em que foi reformulada as propostas referentes as perdas e danos no período de 2006 a 2010. Na reunião foi analisado, discutido e apresentado encaminhamentos para a documentação que será encaminhada pela Associação ao MP e Incra. Uma das propostas encaminhada foi, que a direção agendasse reunião na Vila Muirapinima com a presença do MP para esclarecer junto ao povo a proposta deste referente a criação do Fundo de gerenciamento dos recursos oriundos da perdas e danos.

DOM ERWIN, 50 ANOS NO XINGU: VITÓRIAS E TRISTEZAS


Chegado ao Brasil recém-ordenado, aos 26 anos, em 1980, padre Erwin Erwin foi trabalhar no Pará: vigário cooperador de Altamira; pároco de São Francisco Xavier de Souzel; reitor da Escola Apostólica São Gaspar, Altamira; professor de Filosofia Educacional e Psicologia Educacional no Instituto Maria de Mattias de Altamira; ecônomo da prelazia do Xingu; e encarregado pastoral de Vila Vitória.
Dom Erwin recebeu a cidadania brasileira em 1981 e há cinquenta anos vive ao lado dos índios, dividindo com eles o empenho de salvar a floresta da insaciável fome de recursos das grandes empresas, usinas, madeireiras e monoculturas.

Ser emérito
Em entrevista concedida em 2012, dom Erwin declarou que “tornar-se bispo emérito não significa entregar os pontos“ e assegurou que seu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os “excluídos do banquete da vida“ e a defesa do meio ambiente, o “lar“ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus lhe der o fôlego.


No dia em que sua renúncia foi aceita, quarta-feira, 23 de dezembro, dom Erwin conversou com a RV:
“Faz tempo que já pedi a renúncia e escrevi a carta ao nosso Papa e durou um bocado de tempo até que agora, acharam o sucessor. Tenho fé em Deus que tudo continue nas linhas que nós há tantos anos estamos realizando aqui e fé em Deus que o novo bispo tenha a força e a coragem, com a graça de Deus e a iluminação do Espírito Santo para que possa tomar conta realmente desta imensa prelazia que é maior que a Itália e a maior circunscrição eclesiástica de todo o Brasil. É uma diocese bastante complexa e em parte, bastante conflitiva; estamos enfrentando não sei quantos desafios aqui... então, espero que o novo bispo tenha esta força e possa, com a graça de Deus, servir ao povo de Deus do Xingu”.

Os momentos mais felizes e menos felizes desta trajetória

“Os momentos mais felizes continuam, quer dizer, estou no meio deste povo, nas comunidades, aonde leigos e leigas assumiram a sua responsabilidade. Temos apenas 31 padres para 800 comunidades e uma parte deles tem mais de 70 anos. Se a leiga e o leigo não assumem, então não tem Igreja. Isso para mim é uma alegria ver esta responsabilidade baseada no batismo e no sacramento da crisma. Isto é uma vitória para mim. Outra vitória é que, como Presidente do Cimi, conseguimos em 1987 inscrever os direitos dos povos indígenas na Constituição Federal. Foi uma luta imensa, mas Deus ajudou e agora, continuamos pedindo a Deus que não seja alterado o enunciado na própria Constituição. Isto seria um desastre para os povos indígenas. Tive outras, tantas alegrias”.

“Os momentos mais tristes, você pode imaginar, são os momentos em que estamos diante do caixão de uma pessoa que foi assassinada... tivemos vários casos em nossa prelazia nos últimos anos... Irmã Dorothy, o Dema, Irmão Beto, e o padre Tori, que faleceu ao meu lado naquele desastre... estes são momentos que não podemos esquecer, fazem parte da vida”.

O novo bispo deverá ter coragem. “É... o papa fala sempre que coragem.. Seja corajoso e também muito misericordioso!”.
Papa nomeia frei João Muniz Alves sucessor de dom ErwinO papa acolheu na manhã de quarta-feira (23/12), o pedido de renúncia de dom Erwin Kräutler, que deixa, por razão de idade, a condução da prelazia do Xingu após 35 anos.

Em seu lugar, foi nomeado o franciscano João Muniz Alves, que até o momento era o Guardião da Comunidade Franciscana de São Luís do Maranhão. Monsenhor João Muniz Alves nasceu em 8 de janeiro de 1961 em Carema, município de Santa Rita, na Arquidiocese de São Luís do Maranhão. Emitiu seus primeiros votos na Ordem dos Frades Menores em 1986 e os votos solenes em 1991. Foi ordenado em 1993. Depois de estudar filosofia e teologia em Teresina, no Piauí, obteve o doutorado em ambas em Roma.

Já como sacerdote, foi vigário paroquial, mestre de postulantes, pároco e definidor da vice-Província franciscana da diocese de Bacabal (MA). Em 2014 foi visitador geral da Província franciscana de Moçambique. Atualmente, exerce seu ministério como guardião da comunidade de São Luís do Maranhão, Vigário paroquial, formador e professor de teologia moral.

Até a posse de Frei João, dom Erwin Krautler permanece na condução da prelazia como administrador Apostólico.
Fonte: Rádio Vaticano

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

QUEIMADAS PREJUDICAM A SAÚDE HUMANA E O MEIO AMBIENTE



Aconteceu segunda feira, (14) a segunda ação ao combate aos focos de incêndios na floresta da Região do PAE Juruti Velho, desta vez mais de 150 pessoas estiveram agindo para apagar os focos de incêndios. Moradores das comunidades Pompom, Ingracia, Capitão, Bom Jesus e Vila Muirapinima se uniram em defesa a o meio ambiente e passaram em media 10 horas na mata para conter a queimada que vem causando prejuízos a floresta e aos comunitários que tem visto seus centros de trabalhos destruídos pelo fogo.
Fazer uma queimada sem controle pode causar sérios prejuízos à fauna e flora, reduzindo a cobertura vegetal, diminuindo a fertilidade do solo e comprometendo a qualidade do ar e, consequentemente, a saúde humana, provocando vários tipos de doenças, principalmente respiratórias, quem mais tem sofrido com essas doenças são as crianças e os idosos que tem procurado a Unidade de Saúde e não há equipamentos adequados pra atender este e tipo de emergência.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

“FAZ 20 ANOS QUE A ESQUERDA SÓ PENSA EM ELEIÇÃO”

  
Há alguns meses, ou mesmo anos, João Pedro Stédile, uma das principais lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), vem repetindo algumas advertências dirigidas à esquerda brasileira, relacionadas à evolução da conjuntura política nacional e internacional. Um dessas principais advertências consiste em alertar sobre a importância de não resumir a luta política à luta eleitoral e de não sucumbir às armadilhas da política tradicional, como abraçar o financiamento privado de campanhas como um método natural de fazer política. A crise política iniciada após a reeleição de Dilma Rousseff e a ofensiva da oposição e dos setores mais conservadores do país com o objetivo de derrubar a presidenta eleita pelo voto popular recolocou essas advertências na ordem do dia.
Na última sexta-feira, Stédile esteve em Porto Alegre para participar de um debate na abertura do 14º Congresso Estadual da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre a conjugação de três crises no presente – econômica, política e social –, sobre as movimentações de seus principais protagonistas e seus possíveis desdobramentos. E apontou aquele que considera ser o principal desafio da esquerda neste período: “Construir força popular organizada. A esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base, de conscientizar o povo, de fazer pequenas reuniões. Faz 20 anos, que a esquerda só pensa em eleição”, disse Stédile.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 24-08-2015.
Eis a entrevista.
Na última semana, tivemos uma nova série de manifestações contra e a favor da presidenta Dilma Rousseff e a denúncia oferecida contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Na tua opinião, como esses eventos influenciam no atual clima de instabilidade política que marca a conjuntura nacional?
O Brasil está vivendo um período muito confuso e complexo onde, a cada semana, surgem fatos que complicam mais ainda a leitura da conjuntura na qual inserem esses dois episódios que citou na tua pergunta. Essa complexidade, na avaliação do MST e dos movimentos sociais como um todo, deve-se ao fato de estarmos vivendo um período que conjugou três crises.

Temos uma crise econômica, que afeta a economia brasileira que não cresce há dois anos e deve ficar ainda mais uns dois sem crescer, com um forte processo de desindustrialização que já se reflete inclusive na classe trabalhadora, com aumento do desemprego e diminuição do salário médio. Temos também uma crise social, cuja ponta do iceberg apareceu nos protestos de junho de 2013. O governo adotou uma retórica de diálogo, porém, todos aqueles problemas sociais que eram substrato para as mobilizações de junho, nenhum deles se resolveu, pelo contrário. Os problemas da moradia, do transporte público, do acesso à universidade, todos eles se agravaram. Essa crise social ainda não eclodiu, está latente, mas existe. E, por fim, temos uma crise política cuja origem é o sequestro da democracia brasileira feito pelos capitalistas por meio do financiamento privado das campanhas eleitorais. As dez maiores empresas do país financiaram cerca de 70% dos parlamentares, processo este que gerou os Cunha da vida e os seus 300 aliados. Hoje, a população não se reconhece nos políticos. Diversas pesquisas de opinião apontam os políticos com o menor índice de credibilidade. Então, temos uma dicotomia aí. O que acontece na política não reflete na sociedade, ou só reflete negativamente.
Todos os dias nós temos evidência dessas três crises. Se lermos o Valor Econômico, por exemplo, veremos os reflexos da crise econômica. Se consultarmos os movimentos populares ouviremos relatos de todos eles sobre os problemas sociais que vem se avolumando. E, na política, é o que você citou. Todo dia temos fatos novos.

E quais são, na sua avaliação, os possíveis desdobramentos dessa conjugação de crises?
A dificuldade para sair dessa crise geral é que as classes ainda não se puseram de acordo sobre o que fazer. Seria preciso criar um novo bloco histórico e social que se constituísse numa maioria capaz de encontrar a saída. Isso, em geral, se materializa em períodos eleitorais. O problema é que nós acabamos de sair de uma eleição. Então, nós vamos levar quatro anos, durante todo o governo Dilma, para encontrar essa maioria. Essa é a dificuldade.
Nessas tentativas de saída de crise, o que está sendo mais ou menos sinalizado? A burguesa, no sentido clássico do termo, mais conhecida como os empresários ou o poder econômico, já apresentou a sua proposta de saída. Não é um programa formalizado, mas vem sendo apresentado em suas reuniões e discursos. Essa proposta consiste em realinhar a economia brasileira aos Estados Unidos, que foi um pouco o que aconteceu em 1964. A ideia é que os americanos venham para cá, invistam e tirem a economia da crise, ampliando o mercado para as empresas brasileiras que entrariam de maneira subalterna numa relação com a economia industrial norte-americana. Em segundo lugar, consiste em diminuir o papel do Estado, que hoje se expressa nas propostas de cortar gastos sociais, de diminuir o número de ministérios, de diminuir os gastos com a Previdência, etc. Tudo isso é firula para voltar a velha tese de que o mercado é que resolve. Em terceiro lugar, é diminuir o custo da mão de obra. Esse é o programa deles, que ainda não pode ser explicitado, pois, em sua essência, esse programa é o neoliberalismo, que foi derrotado nas últimas quatro eleições. Eles não podem simplesmente apresentá-lo de novo. Precisam dourar a pílula.
Então, a burguesia está fazendo esse movimento para tentar construir uma maioria em torno do seu programa. Como fazem isso? Pautando essas propostas no Congresso Nacional. Todas as iniciativas do bloco do Eduardo Cunha caminham na direção desse programa: diminuir custo, diminuir Estado, privatizações, abrir a economia e reaproximá-la com os Estados Unidos. Além disso, também pautaram o Judiciário e a grande mídia comercial, da qual a Globo é a grande porta-voz. Esse movimento representa o maior grau de unidade que eles conseguiram até agora, com manifestações da Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro), do Renan Calheiros, presidente do Senado, e com setores do PSDB. Tenho absoluta convicção, pela recente entrevista do Mendonça de Barros, que Serra e Alckmin, embora não possam aparecer publicamente, concordam com esse programa. Mas eles não podem aparecer.
Você referiu o movimento que vem sendo articulado pelo grande empresariado e seus braços políticos para a superação da crise. E quantos aos demais setores da sociedade, é possível vislumbrar alguma movimentação que busca saídas para os atuais impasses?
Nós temos outro segmento, que é a chamada classe média, ou pequena burguesia como denominava Marx. Estamos falando aqui daquela classe média que o Marcio Pochmann menciona no Atlas da Exclusão Social, que, pela renda que tem, representa entre 5 e 10% da população e que sonha um dia em virar burguesia. Qual é o programa que essa classe média apresenta para sair da crise? Golpe na Dilma! Mas isso não é programa, não resolve nenhuma das três crises. Por isso que a burguesia, que é mais esperta, está dizendo para eles: Calma, vocês podem ficar latindo aí na Paulista, em Copacabana, mas isso não é saída para a crise.
O próprio Temer disse isso para eles quando afirmou que não adiantava colocá-lo no lugar da Dilma, pois a crise tem outras raízes. Pelo contrário, se houvesse um golpe institucional, se criaria uma quarta crise, uma crise institucional, que levaria os movimentos sociais e populares para as ruas. Isso desarrumaria todas aquelas regras do Estado burguês que, apesar da crise política, todo mundo segue respeitando. Se isso acontecesse, por que não poderíamos, por exemplo, pedir o impeachment do Sartori ou do Alckmin, cujas campanhas também foram financiadas por empresas privadas. Então, a saída dessa classe média é burra. A nossa sorte, e a deles também, é que representam uma parcela muito pequena da sociedade. É por isso que as mobilizações deles não aumentam. E tem que ser feitas sempre no domingo, né? É muito mais um festival, ao qual eles têm direito, do que propriamente uma luta política.
Do lado de cá, temos a classe trabalhadora, que não está conseguindo apresentar um programa de saída para a crise. Neste momento, as direções de organizações como CUT, UNE, MST, os movimentos de luta pela moradia, estão tentando unificar uma agenda. O que conseguimos construir de unidade até aqui é um programa defensivo contra o golpe, em defesa dos direitos, contra o neoliberalismo, ou seja, é uma defesa do passado, não é avançar como nós queremos. Então, para a classe trabalhadora também está sendo difícil construir um programa propositivo capaz de retomar a ofensiva na direção das mudanças que defendemos. Essa é uma dificuldade real e é neste ponto em que nós estamos.
Quais as perspectivas de superar essa dificuldade?
Espero que, nos próximos meses consigamos avançar na direção desta unidade da classe trabalhadora para construir um programa, não defensivo, mas que apresente propostas para a saída das crises econômica, política e social. Talvez já tenhamos uma maior unidade no tema da crise política, com a defesa de uma Reforma Política construída por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte. Este Congresso não fará essa reforma e os partidos não têm força para aprová-la no cenário atual. No fundo, a saída de um programa construído pela classe trabalhadora vai depender de um componente que ainda não está no cenário, que é a classe trabalhadora se mobilizar e ir para a rua. Até agora, só foram para a rua as mediações, os militantes. A grande massa segue sentada em casa assistindo tudo pela televisão. Por isso que as nossas mobilizações também têm mantido o mesmo tamanho.
Contudo, essa massa e as nossas mediações têm uma arma potente que ainda não foi usada: a greve geral, que afeta diretamente o lucro dos capitalistas. A perspectiva de parar a produção um dia, dois dias, uma semana, coloca em pânico a burguesia. No fundo, esse é o maior medo que eles têm. Por isso não querem ver o circo pegar fogo, pois a lona cairia também sobre as suas cabeças.
Você mencionou algumas organizações há pouco que estão tentando unificar uma agenda comum e não mencionou nenhum partido político entre elas. Considerando que o partido que vem governando o Brasil há 13 anos atravessa uma série crise política e os demais partidos de esquerda parecem não ter força para apresentar uma alternativa, a conjuntura está convocando os movimentos sociais a assumir um maior protagonismo, a exemplo do que ocorreu na Bolívia há alguns anos?
É evidente que os partidos políticos no Brasil, tanto os da burguesia quanto os da esquerda, estão em crise. Os da burguesia foram substituídos pela Globo. Quem dirige ideologicamente as ideias da direita no Brasil é a Globo. Os dirigentes partidários da direita brasileira estão completamente desmoralizados. Estão aí os Eduardo Cunha, os Ronaldo Caiado da vida. E a esquerda precisa fazer uma autocrítica séria porque caiu só no eleitoralismo e, mesmo nesta esfera, não se preocupou em defender uma reforma política. Ao invés disso, fez o jogo da burguesia, abraçando o financiamento privado das campanhas e caindo na arapuca que a Lava Jato expressa. Se não mudarmos as regras políticas, não vai ser de dentro dos partidos que virá a solução. Os partidos já estão enlambuzados. Uma reforma política rejuvenesceria os partidos mas estes não têm força para colocar massa na rua em defesa dessa reforma. Então, isso só poderá ser feito por meio de uma ampla coalizão de todas as forças populares, com todas as formas de mediação de que a classe trabalhadora dispõe, sejam pastorais, sindicatos, movimentos populares, partidos, etc.
Agora não é o momento de discutir quem vai ser protagonista, mas sim de juntar todas as forças para fazer um debate na sociedade e junto às nossas bases sobre quais são as saídas para a crise que está posta e é inegável. Eu não sei como será essa saída. Isso dependerá da correlação de forças e da dinâmica da luta de classes. Acho muito ruim queremos copiar algum exemplo. Tenho visto algumas pessoas dizendo que temos seguir o exemplo do Podemos, da Espanha, ou do Syryza, da Grécia. A história da Espanha é outra e o Tsipras durou apenas três meses. Então, cada país tem a sua dinâmica e nós, brasileiros, teremos que inventar a nossa. A ousadia que nos cabe é inventar.
Quando quisemos copiar, erramos. Quisemos copiar o modelo do financiamento privado de campanhas. Deu no que deu. O componente principal da ousadia que precisamos ter é que precisamos levar esse debate para as massas e fazer com elas se mobilizem e decidam ir para as ruas, criando uma efervescência, um novo dinamismo na política brasileira. No meio dessa efervescência, também vão surgir novos líderes. Não adianta ficar olhando para trás e procurando onde estão os líderes do passado. A dinâmica da luta de classes vai forjar novas lideranças e novas formas de organização também.
Na tua opinião, há um avanço de ideias e valores conservadores no Brasil, de uma direita mais orgânica e extremada, ou é muita fumaça o que está aparecendo nas ruas?
Eu acho que é muita fumaça. Nas raízes do povo brasileiro há energias muito saudáveis. O povo brasileiro é solidário, trabalhador e digno. Agora, essa fumaça é resultado da hegemonia ideológica da burguesia nos meios de comunicação. A Globo é a principal responsável pela projeção desses falsos valores, desse negativismo que afirma que todo mundo é corrupto. Ela projeta essas ideias e valores todos os dias, em suas novelas, em seus noticiários. Aí devemos buscar a causa dessa fumaça que esconde a realidade. E nós não temos meios de comunicação de massa alternativos. Ficamos lutando em trincheiras, com uma página aqui, um boletim ali. Não temos um meio de comunicação nacional que consiga fazer esse debate com a sociedade. O que está faltando na sociedade brasileira é debate sobre os seus problemas e suas possíveis soluções.
Neste momento, há vários grupos se reunindo e discutindo a necessidade de formação de novas frentes de esquerda e de setores progressistas da sociedade. Esses grupos vêm conversando entre si?
Do ponto do vista do diagnóstico, todo mundo está com a mesma leitura, ou seja, que a crise é grave, complexa e vai demorar. Mas não há unidade quanto às possíveis saídas. Não tem um programa. Como estão se movendo as forças, acredito que teremos várias frentes. Nós estamos colocando energia na construção de uma que já tem nome, a Frente Brasil Popular, que junta partidos tradicionais, movimentos populares, a UNE, o Levante Popular da Juventude, as pastorais, entre outras organizações. Nós vamos fazer uma conferência nacional dia 5 de setembro em Belo Horizonte para ver se avançamos em nosso programa. Mas acredito que outros grupos de esquerda vão formar outras frentes, alguns porque tem uma vocação mais eleitoral e querem tirar proveito dessa crise do PT.
No entanto, não creio que uma frente de esquerda limitada em sua base social, por mais clareza ideológica que tenha, consiga acumular força. Agora, mais do que saber para onde tu tem que ir, é preciso ter força social acumulada. E, em períodos de crise, para ter essa força social acumulada, é preciso contar com todos os que querem mudanças, sem exclusão ideológica. No caso da Frente Brasil Popular, o espectro de forças com que estamos trabalhando é quem votou na Dilma no segundo turno, que não são poucos. Se conseguirmos aglutinar numa frente cerca de 54 milhões de brasileiros, teremos uma força suficiente para impulsionar mudanças dentro do governo e se preparar para o pós-Dilma.
Uma última questão. Se fosse possível definir numa frase o principal desafio que a esquerda brasileira tem hoje, qual seria ela na tua opinião?
Construir força popular organizada. A esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base, de conscientizar o povo, de fazer pequenas reuniões. Faz 20 anos, que a esquerda só pensa em eleição. Temos que parar um pouco de pensar em eleição. Não que a eleição não seja importante. Claro que é importante, pois faz parte da democracia. Nós temos feito bons diálogos com o Tarso (Genro) no sentido de que a esquerda precisa recuperar mais o Gramsci. Como viveu num momento de crise do movimento operário italiano, ele tem reflexões que são apropriadas para o período que estamos vivendo. Entre as várias contribuições de Gramsci, uma delas é essa visão de que na luta por mudanças sociais, a luta de classes se manifesta em todos os espaços da vida social. Aparece numa rádio comunitária, num sindicato, num bairro, numa igreja, num jornal, numa fábrica, no comércio, numa praça. Todos são espaços de disputa. E nós, no passado recente, reduzimos tudo isso à disputa eleitoral.
Precisamos preparar a classe trabalhadora para que ela possa disputar, com as suas ideias, todos os espaços da vida social, pois tudo isso é poder político, não só o governo. Para isso, precisamos também recuperar o trabalho de formação de militantes, que a esquerda abandonou. Há uma juventude aí que está a ver navios. A formação política é o casamento permanente entre luta de massas e formação teórica. E a esquerda não fez nenhuma das duas coisas neste último período. A luta de massa foi reduzida à eleição e a formação teórica foi abandonada. Felizmente, a direita está recolocando em nossa pauta a importância da luta de massa. Se não formos para a rua disputar com eles, eles vêm pra cima de nós.

O DESENVOLVIMENTO E O FIM DA COSMOVISÃO INDÍGENA. ENTREVISTA ESPECIAL COM BRUNO CAPORRINO

“Não adianta tentar promover a gestão das terras indígenas sob o argumento de que os modos de vida indígena promovem tal gestão, se as políticas para a educação, por exemplo, são colonizantes e equivocadas, e acabam obrigando os povos indígenas a abandonar esses amplos e profundos conhecimentos”, adverte o antropólogo.
Foto: Portal EcoDebate
“Como viver em terras demarcadas, já que o entorno pode ser ameaçado, e suas populações podem vir a crescer, além do fato de que há inúmeras pressões para que abandonem sua língua e cosmovisão?”, questiona Bruno Caporrino, ao analisar a situação de indígenas que vivem em terras demarcadas na floresta amazônica, mas que têm suas vidas modificadas por conta da urbanização, do desenvolvimento e da imposição cultural.

Segundo ele, as comunidades indígenas que vivem no Brasil sofrem uma “imposição do paradigma dominante” sobre seus regimes de conhecimento tradicional, e é isso que “explica o êxodo que a Amazônia vem vivenciando nos últimos 20 anos e que culmina no esvaziamento das beiras e comunidades e no inchaço das cidades”.
Com frequência, Caporrino visita comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhos que vivem em municípios como Breves, Portel, Chaves, e Afuá, no estado do Pará, e, após o convívio com eles, constata que “ribeirinhos e comunitários deixam suas comunidades, entendendo-se como primitivos, incultos, incivilizados, privados, para morar nas periferias das cidades que começam a hipertrofiar. Passam, assim, do centro de seu universo simbólico, social, econômico, onde faziam tudo por si mesmos, para si mesmos, com recursos ilimitados e uma tecnologia gritantemente adequada a tudo isso, enfim, saem do centro de seu universo para ocupar a periferia da periferia da periferia do universo”.
Na avaliação dele, ao “ajudar” os indígenas, quilombolas e ribeirinhos, “ao tentar tirá-los de seus universos para trazê-los às cidades”, o Estado brasileiro “transforma nobres pescadores em desesperados desempregados, que aceitarão precárias condições de trabalho para produzir, com essa mão de obra barata, produtos que, ao contrário do que era antes, nas comunidades, sequer serão deles, embora feitos por eles”.
A resolução da questão indígena e dos grupos quilombolas e ribeirinhos no país, assegura na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, depende da possibilidade de eles continuarem “vivendo segundo seus jeitos e conhecimentos. Por isso, as políticas públicas devem, obrigatoriamente, ser feitas com ampla participação popular, para que, além de garantir a democracia, sejam adaptadas às realidades e necessidades locais. Uma das necessidades mais importantes é a da integração: as políticas públicas devem ser integradas”.
Bruno Caporrino é antropólogo, formado em Ciências Sociais pela USP e desde 2010 atua como indigenista pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé, uma organização não governamental, sem fins lucrativos, fundada em 2002 por profissionais de diversas áreas, como antropólogos, biólogos e educadores, que já atuavam junto às comunidades indígenas no Amapá e do Norte do Pará desde a década de 1980 e que, com a fundação do Iepé buscaram formalizar esta atuação para fortalecê-la em um âmbito institucional e contemplá-la em um âmbito regional, assessorando os povos indígenas da região para que fortaleçam suas associações, expressões culturais e organizações sociais, através de processos formativos, e para que possam apreender as políticas públicas e influenciá-las a fim de que assegurem seus direitos e garantias.
Confira a entrevista.
Mapa: reservaer.com.br
IHU On-Line - Como é a vida das pessoas que vivem à margem dos rios na Amazônia? Hoje, os moradores são, em sua maioria, indígenas ou há também pescadores e pessoas ligadas a comunidades ribeirinhas?

Bruno Caporrino - As beiras são tantas quanto são suas gentes. Os povos indígenas, em sua maioria, residem em terras indígenas demarcadas, o que constitui um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 e um importante passo para a conformação de um Brasil justo, plural e democrático. Já as comunidades ribeirinhas são, em sua maioria, habitadas por pescadores e extrativistas, mas trata-se de um universo tão variegado que, de região para região, as ocupações a que se dedicam seus moradores variam muito.
No baixo Amazonas, há regiões em que os habitantes das comunidades ribeirinhas se dedicam à pesca e ao extrativismo de açaí, que movimenta importante cadeia. Mas esse recorte “profissional” não se aplica muito bem: definir as pessoas em função das atividades a que se dedicam pode ser muito arriscado nesses contextos, já que as famílias costumam, em geral, dedicar-se a muitas atividades simultaneamente – da extração de açaí à pesca, passando pela extração de madeira, carpintaria (naval ou civil), além de fazer seus roçados e se dedicar à criação de animais para subsistência e, em alguns casos, venda de excedente. É o que ocorre com as comunidades situadas nos furos e voltas que ligam Macapá a Belém, passando por Afuá, por exemplo.
IHU On-Line - Qual é a peculiaridade e as diferenças das comunidades e cidades como Afuá, Breves, Chaves, Melgaço, Portel, Bailique?
Bruno Caporrino - É muito difícil definir, porque se trata de percursos históricos diferentes, em contextos diferentes, e espaços diferentes. Afuá, por exemplo, é uma ode à mentalidade ameríndia: se o rio sobe e desce conforme as marés, vivamos sobre ele de modo que ele possa crescer, e nós também. Breves é um grande entreposto entre Macapá e Belém, com forte colonização portuguesa e interações diversas com um Estado diferente em momentos diferentes e índios diferentes. Isso merece muito, muito, muito trabalho de campo, e eu confesso que gosto muito de ver que, a cada visita, saio com mais perguntas do que respostas, e, assim, poderei continuar me perdendo por aí (risos). 

“A maioria dos povos indígenas que ocupam a região se afastou, historicamente, das margens do Amazonas, fugindo das pressões exercidas pela colonização”

IHU On-Line – É possível saber quantas comunidades indígenas/ribeirinhos vivem à margem dos rios na Amazônia e como elas se relacionam?
Bruno Caporrino - Trata-se de um grande universo de comunidades. Em alguns casos, elas consistem na ocupação de uma beira por uma família extensa apenas (avós, pais, genros, noras, netos, primos). Mas algumas são comunidades maiores, como Bailique, distrito de Macapá, e há até agrupamentos maiores, como Breves, Portel, Chaves, e Afuá. Sendo um universo tão vasto e variegado, as relações não poderiam ser simplificadas categoricamente com um enunciado “são assim”. São muitas e muitas comunidades, a ponto de ser possível questionar inclusive as estatísticas oficiais, uma vez que os Censos do IBGE, por exemplo, não têm tanta capilaridade quanto algumas estatísticas municipais relativas à educação e à saúde, por exemplo.
O ideal, do ponto de vista demográfico, seria consorciar esses levantamentos, mas isso exigiria unificar as categorias de levantamento desses dados. Pode-se dizer, contudo, que nessas comunidades vive-se de acordo com outros regimes de conhecimento e relações, pautados pelas trocas e permutas, pela partilha, muitas vezes, e, paradoxalmente, por relações de vizinhança e proximidade, por mais distantes que sejam as comunidades umas das outras. O dinheiro, equivalente universal que equipara bens numa troca, é utilizado, mas não se pode dizer que anula as relações entre os “vizinhos” que trocam. De favores a serviços (como a tradicional “passagem” – a ‘carona’ numa embarcação) até a troca de bens e produtos, mesmo que pautada pela troca de excedentes e mediada pelo dinheiro, nas comunidades menores, se diz que ela acontece “valendo”: olhos nos olhos, visando trocas justas, e norteada e regulamentada por uma miríade de códigos sociais.
Nesses contextos, as embarcações desempenham um papel fundamental: desde os “turcos de regatão” que varavam rios, igarapés e igapós mercadejando com seringueiros, indígenas, castanheiros e pescadores, trocando bolas de seringa por mantas de pirarucu seco ou pilhas e velas, em regime de “aviamento” até os dias de hoje, as ligações entre as comunidades e ‘cidades’ como Breves e Afuá se dão por meio das embarcações.
IHU On-Line - Que tipo de relação existe, ainda, entre índios e não índios na região?
Bruno Caporrino - Há muitas etnias indígenas na região, e a maioria delas conta com suas terras demarcadas e homologadas. Organizados em torno de fóruns como associações, os povos indígenas, cada qual à sua maneira, respeitando seus regimes de conhecimento e organização social, deliberam consensos sobre como desejam fazer a gestão socioambiental de suas terras, e influenciar as políticas públicas de modo que elas atendam suas necessidades, que são muito peculiares e devem ser diferenciadas das políticas públicas dirigidas aos não índios (segundo o que garante, por exemplo, a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada pelo Brasil em 2004).
Afastamento
É importante saber que a maioria dos povos indígenas que ocupam a região se afastou, historicamente, das margens do Amazonas, fugindo das pressões exercidas pela colonização, cada qual a seu modo, e em um percurso geográfico e histórico diferente, ocupando as regiões mais montanhosas e de acesso mais difícil às frentes de colonização. Mesmo assim, inúmeras modalidades de relação com inúmeros agentes não indígenas foram estabelecidas historicamente, relegando ao Pará e ao Amapá uma cultura rica e diversa, produto de variados contatos com variadas gentes em variados momentos históricos. Assim como cada povo indígena tem sua língua, seu sistema de parentesco e relações, e, portanto, suas relações políticas, as muitas comunidades de não índios, que ocupam as beiras no Baixo Amazonas, são muito diversas, pois têm histórias diversas.
A região de Breves, por exemplo, conta com traços históricos e culturais próprios, diferindo de regiões como Óbidos e Oriximiná. Indígenas diferentes, interagindo com não indígenas diferentes (afrodescendentes, açorianos, portugueses, franceses, holandeses) em momentos históricos diferentes. Isso permitiu aos habitantes desse universo consolidar aspectos sociais muito peculiares. Houve contextos e períodos em que as relações entre indígenas e não indígenas foram belicosas, como no caso da região norte do Amapá e do Pará, disputada por portugueses, franceses, holandeses e indígenas diversos. E houve contextos e momentos em que essas relações foram pautadas pelas trocas simbólicas e materiais que moldaram as feições específicas de cada região. Desde a década de 1950, contudo, o Estado brasileiro retomou projetos colonialistas para a Amazônia e passou a adotar posturas muito equivocadas para a região, prepotentemente chamada de “vazio demográfico”, o que demonstra o grau de desconhecimento desse tipo de ideologia: índio não é gente? Quilombola, caboclo, não é gente? 

“Na Amazônia, os rios são as principais vias para a socialidade”

 

Ideologia nacionalista
A retomada desse pensamento moldou ações que degeneraram nos planos da ditadura civil-militar para a região. O paradigma por trás desses projetos era a ideologia nacionalista, integracionista e assimilacionista, que visava transformar os índios em “brancos” e, portanto, “brasileiros”, numa versão mais atualizada da sanha colonizadora que pretendia “transformar índios em gente”, de modo que pressões madeireiras e minerárias, incentivadas pelo Estado, sob poder do capital — muitas vezes internacional — promoveram o avanço de frentes de expansão insustentáveis, tanto ecológica quanto economicamente. Essas frentes geraram conflitos entre indígenas e não indígenas. Contudo, pode-se dizer que, no geral, entre indígenas e os não indígenas que habitam as pequenas comunidades ribeirinhas, as relações são de trocas (materiais e simbólicas).
Atualmente, sobrevivem relações e modelos de pensamento e organização social muito tributários dos povos indígenas, nas comunidades amazônidas como um todo. Essa é a maior riqueza com a qual qualquer país se orgulharia de contar: riqueza sociocultural, imiscuída em uma vasta gama de contextos socioambientais. 
IHU On-Line - Num artigo você comenta que, tanto o que une quanto o que isola as diferentes comunidades que vivem na Amazônia, é a água. Que relação elas estabelecem com a água e como veem esse recurso natural?
Bruno Caporrino - Na Amazônia, os rios são as principais vias para a socialidade. No Baixo Amazonas, isso não é diferente. Sobre as águas, contando com elas, e nunca contra elas, uma vasta gama de socialidades se desenvolveu tomando-a como um fator preponderante, em vez de negar. Quando Leandro Tocantins apresentou seu livro “O rio comanda a vida” (1952) para Getúlio Vargas, teve de ouvir do então ditador que seu projeto para o Brasil seria inverter a relação, e fazer, através das políticas públicas, com que o rio fosse comandado. Houve, como mencionei, muitos projetos nesse sentido: usinas hidrelétricas, barragens, comportas, canalizações, para a Amazônia. Mas, como um Fitzcarraldo (personagem principal do filme homônimo de Werner Herzog, 1982), o Estado e o capital deram, se permitem o folguedo, “com os burros n’água”. Todos os projetos voltados para a Amazônia se valiam de um paradigma “natureza versus cultura”, ou melhor, “cultura versus natureza”, onde o Homem (seja lá o que for essa síntese de tantas humanidades possíveis) seria o senhor da vida e dominaria a ‘natureza’. Esse paradigma se encontra no cerne da cosmologia ocidental corrente: desde o Antropocentrismo renascentista ao evolucionismo (na verdade, uma deturpação das teorias de Darwin, que nunca falou em evolução) ao positivismo, encontramos traços desse mito fundador cartesiano do pensamento ocidental: homem igual superação da natureza. Natureza igual matéria inanimada, inerte e não reativa.
Esses projetos foram por água abaixo na Amazônia justamente por não fazer como os seringueiros, quilombolas, retirantes, que se mudaram para o bioma ao longo do tempo. Eles aprenderam com os povos indígenas suas tecnologias e passaram a adotar, à sua maneira, evidentemente, seus conhecimentos e paradigmas sobre os ambientes e suas gentes, refletindo isso em suas modalidades de relação com eles, e influenciando inclusive sua organização social e cosmovisão. A água permeia, de fato, tudo nesses tecidos sociais. Passando a viver com as águas, em parceria com elas, as muitas gentes que ocuparam a Amazônia com o passar do tempo dedicaram-se a desenvolver estratégias que, em lugar de superá-la, domá-la, dedicaram-se a fazer como os povos ameríndios, e fazer contratos, pactos, acordos com a água e seus regimes, valendo-se dela a seu favor.
Pré-conceitos evolucionistas
Como bem coloca Immanuel Kant em seu Crítica da razão pura: a pomba só alça voo por contar justamente com a resistência que é oferecida pelo ar. Longe de negá-la, o pássaro respeita, reconhece essa característica e, em acordo com ela, alça voo, se vale dela, respeitando-a. Esse é um traço definitivo da relação entre as muitas gentes e as águas na Amazônia: o respeito, não como um traço “ecologicamente correto” (que seria uma justificativa ad hoc), mas sim o respeito às feições, regimes, instanciações das águas, a fim de valer-se delas para tirar partido delas. Fazendo suas casas sobre as águas, os ribeirinhos não se abalam com as cheias dos rios. Pescam da porta de suas casas. Enquanto isso, nas cidades que imitam (muito equivocadamente, aliás) o paradigma europeu de urbanização e ocupação do espaço (que reflete o paradigma ocidental de relação com a ‘natureza’, pautado pela superação e pela negação), rios são canalizados, córregos, aterrados e cobertos, vales, desmatados, e o prepotente “progresso”, que se traveste de objetividade e cientificismo na cruzada contra a ‘natureza’ acaba demonstrando ignorar absoluta, completamente, o próprio planeta, pois cidades são soterradas, alagadas, rios transbordam, cidades como São Paulo ficam sem a tão essencial água...
A questão de fundo é: quais os regimes de conhecimento envolvidos na ocupação espacial e na lide com os ambientes? É preciso desvencilhar-se dos pré-conceitos evolucionistas e compreender que as gentes que ocupam a Amazônia possuem um sólido corpus epistemológico sobre os ambientes e o cosmos. Não se trata de “lendas e mitos”, mas sim de saberes, de uma rica gama de regimes de conhecimentos, que têm um importante diferencial: reconhecer os ambientes e suas gentes como interlocutores, agentes (como bem elabora a etnologia atual, vide os textos de Eduardo Viveiros de Castro). Para os caboclos, ribeirinhos, pescadores, a água é um agente: ela age e reage. Saber estar no mundo é saber estar com ela, reconhecê-la. No inverno os rios sobem de nível? Fazem-se casas sobre palafitas. Mora-se sobre barcos. E por aí vai: a água permeia tudo nesse contexto, sobretudo as mentalidades. 

 

“Para os caboclos, ribeirinhos, pescadores, a água é um agente: ela age e reage”

IHU On-Line - Qual é a imagem de senso comum que se tem acerca dessas comunidades que vivem na região amazônica? Como essa imagem foi construída e de que modo ela interfere na maneira como, de modo geral, se pensa nos indígenas e comunidades que vivem na Amazônia?
Bruno Caporrino - Para o pensamento ocidental, grosseiramente falando, claro, há uma cisão entre natureza e cultura. Natureza seria matéria inerte, não ativa, não reativa. Somente aos homens seria dado inteligir: pensar, entender. Aos animais, como escreve Descartes, por exemplo, resta mover-se, pois seriam mecanismos orgânicos, desprovidos de anima, alma. Esse traço se reflete nas relações entre homens e ambientes na história desse regime de conhecimento. Segundo esse paradigma, grosso modo, a alma seria um princípio extremamente único, individual, e somente os homens a teriam, restando aos animais, plantas, rios, etc., ser matéria com a qual se pode moldar o mundo, à imagem e semelhança do ideal antropocêntrico de homem ocidental.
O corpo, por exemplo, segundo esse corpus teórico, seria universal: rim é rim, fígado é fígado, bois, porcos, homens, os têm. O pensamento ameríndio, ao contrário, parte do pressuposto contrário: basicamente reconhece que o corpo é a instanciação específica dos seres, ao passo em que a alma, o anima, seria geral, universal. Esse regime de conhecimento pressupõe que seres vivos agem, reagem, interagem, intelegem. E atribui humanidade à vida. Calcadas sobre matrizes epistemológicas diferentes, as cidades ‘ocidentais’ são edificadas sobre o mundo, com matéria do mundo, considerados inertes, inanimados. Os povos que habitam a Amazônia se valem de uma mistura de regimes de conhecimentos muito rica, mas, certamente, se pode dizer que predomina o regime ameríndio de conhecimento, que atribui agência, capacidade de agir, aos seres. Assim, enquanto as cidades ocidentais devastam vales, e depois ficam sem água, os povos ameríndios e amazônidas reconhecem as florestas e águas, e suas gentes, capacidade de agir.
Não se trata, repito, de “fazer ecologia”. Trata-se de ciência, de regimes de conhecimento. Dotando os seres de agência, os povos que habitam as beiras na Amazônia, reconhecem-nos como interlocutores, e, assim, dialogam, negociam com eles, mais do que simplesmente domá-los. Assim, casas sobre palafitas deixam o rio... simplesmente correr. Encher, secar. Barcos e casas de madeira são biodegradáveis, e podem ser abandonados, conforme as exigências das roças o exija. Trata-se, no caso das comunidades amazônidas, de muitos regimes de conhecimento refletidos em muitas modalidades de relação social, e de relação com os ambientes e seus regimes. Mas, no geral, se bebe água, porque não se “doma” a água.
IHU On-Line - Como essas cidades têm se modificado a partir da expansão urbana e como elas sobrevivem desde então? De que modo a expansão urbana altera o modo de vida deles?
Bruno Caporrino - Infelizmente, o paradigma ocidental predominante, pautado pela dualidade “homem x natureza”, tem uma característica: diferentemente dos regimes ameríndios, esse pensamento se pretende colonizador. Aos povos tradicionais é muito comum e natural trocar. Absorver, canibalizar, como bem percebeu Mário de Andrade. Mas o pensamento ocidental se pretende reformador, e negando ao “outro” sequer a capacidade de pensar, ele prega seus valores através de todos os meios possíveis. Junta-se, no dizer popular, a fome com a vontade de comer: os povos tradicionais possuem uma abertura fantástica à alteridade e, assim, estão sempre muito dispostos a aceitá-la e incorporá-la, ao passo que o pensamento ocidental se pretende o “único pensamento”, o único conhecimento. E se impõe. Assim, nas inúmeras comunidades espalhadas pela Amazônia, assiste-se à televisão, e se incorpora uma autoimagem desastrosa: “nós somos atrasados. Somos as crianças da humanidade. Estamos alinhados à natureza e, por isso, somos primitivos”. Morar no mato passa a ser, com o tempo, deplorável, sendo o ideal de vida habitar grandes cidades de concreto e... passar fome e mesmo sede.
Essa imposição do paradigma dominante sobre os regimes de conhecimento tradicional explica o êxodo que a Amazônia vem vivenciando nos últimos 20 anos, e que culmina no esvaziamento das beiras e comunidades e no inchaço das cidades. Ocorre, contudo, que o modelo de cidade imposto por esse sistema de valores foi desenvolvido segundo critérios que não chegam aqui. Disso decorre que os ribeirinhos e comunitários deixam suas comunidades, entendendo-se como primitivos, incultos, incivilizados, privados, para morar nas periferias das cidades que começam a hipertrofiar. Passam, assim, do centro de seu universo simbólico, social, econômico, onde faziam tudo por si mesmos, para si mesmos, com recursos ilimitados e uma tecnologia gritantemente adequada a tudo isso, enfim, saem do centro de seu universo, para ocupar a periferia da periferia da periferia do universo... dos outros, no caso, Miami, Nova Iorque, os centros do poder tão divulgados como modelos a se seguir. 

“As políticas públicas tendem a igualar (negativamente) índios, ribeirinhos e habitantes das cidades”

 

Paradigma dominante
Como esse paradigma é dominante, o Estado o endossa. Prova disso são as políticas públicas: equalizadas e equalizantes, as políticas públicas tendem a igualar (negativamente) índios, ribeirinhos e habitantes das cidades. Chega a ser até engraçado andar por vilas ribeirinhas e ver, nas escolas, cartilhas do MEC com ensinamentos em português, por exemplo, que se valem de sinalização semafórica e faixas de pedestres, coisas que só existem nas cidades. Trata-se de um grande processo de colonização, que visa trazer os habitantes de universos equilibrados social, cultural, econômica, ecológica e, sobretudo, simbolicamente, para a periferia de um modelo que sequer é implementado direito.
Creio que o que está por trás disso é esse paradigma: na melhor das intenções, o Estado crê ajudar quilombolas, indígenas e ribeirinhos, ao tirá-los de seus universos (onde repito, estão no centro, como soberanos), para trazê-los às cidades. Troca-se, assim, vilas ribeirinhas onde se caça, pesca, extrai e reparte, “avizinha”, por periferias de centros inchados, sem as condições essenciais como luz, água tratada e esgoto. É um muito mau negócio – para essas populações, mas não para o capital, que, manipulando o Estado, engrossa o famigerado exército industrial de reserva e transforma nobres pescadores em desesperados desempregados, que aceitarão precárias condições de trabalho para produzir, com essa mão de obra barata, produtos que, ao contrário do que era antes, nas comunidades, sequer serão deles, embora feitos por eles. 
IHU On-Line - Como os moradores dessas cidades, especialmente os mais antigos, veem a expansão urbana?
Bruno Caporrino - Nunca me esqueço de uma longa conversa que tive com Dona Veridiana, uma senhora de 80 anos, em Breves. Ela pescava “manjubinha”, um pequenino peixe, de cerca de 50 g, com seus muitos netos, à beira. Sentei-me a seu lado, e conversamos por um dia inteiro, à beira. Seus netos (10 ao todo) estavam morando com ela, já que os pais (filhos de Dona Veridiana) tinham seguido cada qual um caminho. Dona Veridiana morava com o marido e os filhos numa “beira”, isolados, quando o marido resolveu deixar de pescar e vender açaí para tentar sorte melhor em Breves. Lá chegando, mudaram-se para uma casinha na periferia da então crescente Breves. Sua filha enamorou-se de um rapaz e deu à luz ao neto mais velho. O rapaz, contudo, não encontrou emprego em Breves, porque, ao contrário do que se faz nas comunidades, não podia plantar roça ao lado de casa, pescar na frente de casa: se depararam com uma situação em que um ser humano só tem direito a alguns poucos metros quadrados para viver, sendo, o resto, do Estado ou propriedade particular. Esse jovem foi tentar a sorte no garimpo e levou a neta de Dona Veridiana, que voltou anos depois, viciada em tóxicos, e com mais três filhos, que deixou com a mãe para, depois, sumir. O outro filho, também sem conseguir emprego, teve uma desavença com um vizinho, que, nesse contexto, era apenas um estranho, e infelizmente cometera homicídio, deixando a mãe com os quatro netos.
Infelizmente, a história de todos os filhos de Dona Veridiana era muito semelhante. E, mais infelizmente ainda, essa é uma história muito comum. É a história da ocupação urbana precarizada na Amazônia, pautada pela perda de uma matriz simbólica que permitia aos homens outras relações entre si, com a terra, com a água, com o espaço, com o trabalho, com as florestas. 

“Onde há populações tradicionais vivendo em florestas, estas florestas estão mais preservadas

IHU On-Line - Há presença do Estado nessas cidades?
Bruno Caporrino - Ouvindo os agricultores familiares do Amapá, por exemplo, em vários momentos, é comum ouvir que “o governo não aparece para dar autorizações para o plantio dos roçados, ou certificar a produção, mas sim para punir quem derruba uma pequena área para plantar roça”. E é verdade. Trata-se, é preciso entender, de um conflito de paradigmas. O Estado universaliza, não aplica políticas específicas e diferenciadas, embora devamos ser justos e reconhecer que, graças à Constituição Federal de 1988, há políticas nesse sentido. Contudo, os agentes que acabam ocupando os postos dentro do Estado almejam, perseguem os valores, os ideais, o modelo difundido pesadamente como o modelo ideal: carro, casa própria, salários, posses. E passam a aplicar as políticas públicas nesse sentido. Por isso é comum ver, em terras indígenas, banheiros construídos sem consulta às comunidades, que nunca usariam e nem usam tal equipamento. Ao passo em que as políticas para a saúde e para a educação são, como se diz por essas bandas, “políticas de gabinete”, elaboradas por tecnocratas que desconhecem as realidades locais.
O que é desenvolver-se?
Assim, quando há presença do Estado, ela não é necessariamente boa. No fundo, é mesmo uma questão de valores: apregoa-se o desenvolvimento. Mas... o que é isso? O que é desenvolver-se? O que é saúde? Seria a qualidade de vida, qualidade de relações, qualidade de vida, de água, comida boa? Ou seria consumir produtos industrializados, obtidos mediante trabalho precário, e depois ter de entupir de remédios? O que é educação? Seria a educação a prática social e coletiva de construção da pessoa, que passa a atuar como uma cidadã dentro dos códigos apreendidos, na prática? Ou consistiria em trancar crianças numa linha de produção fordista, que geraria quadros para o mercado? Essas discussões estão na pauta de muitos povos amazônidas. Mas, infelizmente, não de todos. O fato é que, migrando das beiras, comunidades, para a cidade, passa-se a viver sob outras regras, dentro de outro sistema social, de tempo, de espaço, de relações. Nesse sistema, é fundamental canalizar e tratar água. A energia elétrica é essencial. A educação escolar, idem, etc. Mas isso não está ocorrendo.
IHU On-Line – Como os indígenas contribuem para a conservação da Amazônia?
Bruno Caporrino - Ao contrário do que a mídia dominante apregoa, a Constituição Federal de 1988 não atribui aos povos indígenas ‘privilégios’. Trata-se de um reconhecimento, reparatório, a um direito que é muito mais antigo do que o próprio Brasil. Aos povos indígenas são reconhecidos os direitos (é essa a palavra) à autodeterminação, às suas expressões culturais, e ao usufruto de terras que assegurem sua sobrevivência, inclusive cultural. Desse modo, os povos indígenas lutaram para conseguir a demarcação de suas terras indígenas, mas, depois de demarcá-las, se depararam com outro desafio: como viver em terras demarcadas, já que o entorno pode ser ameaçado, e suas populações podem vir a crescer, além do fato de que há inúmeras pressões para que abandonem sua língua e cosmovisão? Diante disso, os povos indígenas passaram a deliberar, através de seus fóruns representativos legítimos, iniciativas para a gestão de suas terras. E começaram a fazer planos de gestão territoriais e ambientais, que são consolidados de seus consensos sobre como decidiram se organizar para continuar vivendo segundo seus jeitos e conhecimentos e, assim, fazer a gestão socioambiental de suas terras.
É forçoso pontuar que está cientificamente comprovado que, onde há populações tradicionais vivendo em florestas, estas florestas estão mais preservadas. Está comprovado que onde há populações tradicionais caçando, pescando e fazendo roçados pequenos, em regime tradicional, há muito mais caça, peixe, biodiversidade, do que nos locais onde há somente florestas. Resumidamente, pode-se dizer que os modos indígenas de se organizar, ocupar a terra e usufruir dos recursos são muito eficientes para a gestão da biodiversidade. 

 

“Os povos indígenas prestam um imenso favor à humanidade”

Os indígenas e um favor à humanidade
Com base nisso, o que muita gente esquece é que os povos indígenas prestam um imenso favor à humanidade: o ar que você respira e a água que bebe, por exemplo, podem se dever a eles. Por conta disso, os povos indígenas organizaram-se e conseguiram que o Estado reconhecesse seus Planos de Gestão, através da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena – PNGATI, lançada por decreto presidencial 7747 de 2012. Essa política reconhece os planos de gestão socioambientais indígenas como instrumentos para a gestão das terras e para a promoção da qualidade de vida dessa parcela da população e de todo o resto da população brasileira. Contudo, há que se frisar que o que assegura a qualidade ambiental das terras indígenas é a permanência dos índios, mas essa permanência deve se dar com qualidade.
Os índios precisam que o Estado não os atrapalhe, pois só há gestão socioambiental quando continuam vivendo segundo seus jeitos e conhecimentos. Por isso, as políticas públicas devem, obrigatoriamente, ser feitas com ampla participação popular, para que, além de garantir a democracia, sejam adaptadas às realidades e necessidades locais. Uma das necessidades mais importantes é a da integração: as políticas públicas devem ser integradas. Não adianta tentar promover a gestão das terras indígenas, sob o argumento de que os modos de vida indígena promovem tal gestão, se as políticas para a educação, por exemplo, são colonizantes e equivocadas, e acabam obrigando os povos indígenas a abandonar esses amplos e profundos conhecimentos.
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Bruno Caporrino - Gostaria de recomendar, para quem tiver mais interesse sobre os temas em questão, outros textos. O primeiro é meu blog pessoal: Pneumotoráxico. E abaixo, outros textos que podem interessar: - Leibniz e Darwin em Afuá e - Piseagrama.org
Por Patricia Fachin

DESMATAMENTO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO AMEAÇA SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS. ENTREVISTA ESPECIAL COM ELIS ARAÚJO

“A produção de chuva local e para outras regiões do país também pode diminuir com a perda de floresta nas UCs”, diz a advogada do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia - Imazon.
Foto: Portal Envolverde
Apesar de o Brasil ter assumido o compromisso de reduzir as taxas de desmatamento no país, somente entre 2012 e 2014 a Amazônia “perdeu 1,5 milhão de hectares de florestas e cerca de 10% desse total ocorreu dentro de Unidades de Conservação – UCs”, informa Elis Araújo à IHU On-Line. Os dados compõem o resultado do estudo realizado pelo Imazon, intitulado “50 Áreas Protegidas críticas em desmatamento na Amazônia”.

Segundo Elis, as 50 UCs que apresentam estado mais crítico “respondem por 96% do desmatamento ocorrido dentro de UCs nesse período e estão localizadas em oito estados da Amazônia Legal”, sendo as dos estados do Pará e de Rondônia as que possuem um percentual mais elevado de desmatamento.
Elis Araújo explica que a vulnerabilidade dessas áreas está relacionada à existência de “grandes obras de infraestrutura, como hidrelétricas e rodovias, que acabam facilitando o acesso, a apropriação indevida das terras e a exploração ilegal de recursos naturais” na região.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ela frisa que “não pode haver desmatamento nas UCs”, e que “os Tribunais de Contas da União e dos Estados da Amazônia Legal estão exigindo que os órgãos ambientais apresentem planos de ação para a implementação das UCs”. O desmatamento, pontua, “também implica em perda de serviços ecossistêmicos, que refletem os benefícios diretos e indiretos providos pelo funcionamento dos ecossistemas, sem a interferência humana”.
Elis de Araújo é advogada e especialista em Bioestatística pela Universidade Federal do Pará - UFPA.
Confira a entrevista.
As 50 Unidades de Conservação com maior
desmatamento na Amazônia entre 2012 e 2014
Mapa cedido por Elis Araújo
IHU On-Line - Quais Unidades de Conservação foram analisadas pelo estudo Áreas Protegidas Críticas na Amazônia no período de 2012 a 2014 e qual a situação ambiental delas?

Elis Araújo - Nós analisamos o desmatamento ocorrido na Amazônia entre agosto de 2012 e julho de 2014, que cobre dois períodos de monitoramento anual do desmatamento pelo Prodes (sistema de monitoramento do desmatamento por imagens de satélite operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE). Nesse período, a Amazônia perdeu 1,5 milhão de hectares de florestas e cerca de 10% desse total ocorreu dentro de Unidades de Conservação - UCs; 160 UCs ao todo. Dentro desse universo de UCs, nós identificamos as 50 mais desmatadas, as mais críticas.

As 50 UCs críticas respondem por 96% do desmatamento ocorrido dentro de UCs nesse período e estão localizadas em oito estados da Amazônia Legal. Os Estados do Pará e de Rondônia são os que possuem maior número de UCs críticas (20 e 11 respectivamente) e maior percentual de desmatamento neste grupo, totalizando 87% (Veja o mapa acima).

Dentre as 50 UCs críticas, aquelas sob gestão estadual foram as mais desmatadas, com 101.611 hectares, ou 67%. Observamos mais desmatamento em UCs estaduais em Rondônia. Contudo, no Pará, as UCs federais foram mais desmatadas que as estaduais.

“Dentre as 50 UCs críticas, aquelas sob gestão estadual foram as mais desmatadas”

 
IHU On-Line - Em termos comparativos com anos anteriores, o que mudou em relação às UCs nesse período de 2012 a 2014?
Elis Araújo - No nosso estudo anterior, “Áreas Protegidas Críticas na Amazônia Legal”, identificamos as 10 áreas protegidas (UCs e Terras Indígenas - TIs) mais desmatadas da Amazônia entre 2009 e 2011, considerando médias anuais. Nesse ranking, aparecem cinco TIs e cinco UCs. As cinco UCs mais desmatadas desse ranking estão entre as 25 primeiras do ranking atual. Algumas apresentaram redução no desmatamento anual, mas este, ainda assim, deve ser considerado alto (são milhares e centenas de hectares abertos) e deveria ser zero em algumas categorias como Reserva Biológica.
IHU On-Line - O que a legislação determina acerca do desmatamento em UCs?
Elis Araújo - De modo geral, não pode haver desmatamento nas UCs. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação - Snuc dispõe sobre 12 categorias de Unidades de Conservação e em apenas cinco delas permite áreas particulares em seu interior. A Área de Proteção Ambiental - APA é a categoria mais permissiva quanto à ocupação humana não tradicional. As outras quatro (Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Área de Relevante Interesse Ecológico, Monumento Natural e Refúgio da Vida Silvestre) podem ser constituídas por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais pelos proprietários. Em qualquer hipótese, o desmatamento só pode ocorrer nas áreas particulares de acordo com as regras do Código Florestal e se autorizado pelo órgão ambiental competente.
No nosso estudo, as categorias mais desmatadas foram APA, com 43% do total, Floresta Nacional - Flona, com 19%, e Reserva Extrativista - Resex, com 15%. O desmatamento descontrolado em APA implica na perda de áreas que deveriam ser reservadas à proteção de espécies de animais e plantas e de recursos hídricos. O desmatamento em Flona compromete seu potencial madeireiro ainda não explorado por concessão florestal e o desmatamento em Resex compromete o modo de vida das populações tradicionais que a habitam.

“O desmatamento nas UCs críticas pode ter resultado na perda de 60 milhões a 114 milhões de árvores e ter afetado de 2,5 milhões a 2,9 milhões de aves”

IHU On-Line - É possível identificar quais são as causas que geram desmatamento nessas UCs?
Elis Araújo - Em geral, as UCs críticas amazônicas estão na área de influência de grandes obras de infraestrutura, como hidrelétricas e rodovias, que acabam facilitando o acesso, a apropriação indevida das terras e a exploração ilegal de recursos naturais. A falta de investimentos deixa as UCs ainda mais vulneráveis a ações ilegais. Sete das dez áreas mais desmatadas e que respondem por 81% do desmatamento nas áreas críticas sofrem com o baixo grau de implementação de acordo com dados do Tribunal de Contas da União - TCU. Ou seja, faltam planos de manejo, conselho gestor, recursos humanos e financeiros suficientes.
IHU On-Line - Quais são as implicações ambientais do desmatamento das UCs para a Amazônia de modo geral?

Elis Araújo - O desmatamento implica em perda de biodiversidade (animais e plantas). Por exemplo, um estudo liderado por Ima Vieira do Museu Goeldi, intitulado “Estratégias para evitar a perda de biodiversidade na Amazônia”, reúne algumas estimativas para a quantidade de árvores, aves e primatas que podem ser encontrados por hectare e por km² de floresta. Com base nessas estimativas podemos ter uma ideia do impacto do desmatamento sobre a biodiversidade; por exemplo, o desmatamento nas UCs críticas pode ter resultado na perda de 60 milhões a 114 milhões de árvores e ter afetado de 2,5 milhões a 2,9 milhões de aves.
O desmatamento também implica em perda de serviços ecossistêmicos, que refletem os benefícios diretos e indiretos providos pelo funcionamento dos ecossistemas, sem a interferência humana. Exemplos: controle da água, controle de erosão, ciclagem de nutrientes, etc. Mais de um terço da água para consumo humano é diretamente captada em UCs ou em rios que se beneficiam de sua proteção. A produção de chuva local e para outras regiões do país também pode diminuir com a perda de floresta nas UCs. De acordo com o cientista Carlos Nobre, a floresta amazônica é responsável pela formação de mais da metade das chuvas nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil e em pelo menos cinco países da América do Sul.
Além disso, o desmatamento também impacta os modos de vida de populações tradicionais e indígenas, que perdem os recursos que utilizam para sua alimentação, vestuário, moradia e reprodução cultural. Assim, o desmatamento ameaça a sociodiversidade da Amazônia, que detém um saber ainda pouco estudado sobre a floresta e que contribui para a sua proteção e diversidade biológica.

 

“A floresta amazônica é responsável pela formação de mais da metade das chuvas nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil e em pelo menos cinco países da América do Sul”

IHU On-Line - Como é feita a manutenção e fiscalização das UCs atualmente?
Elis Araújo - Para assegurar a gestão e proteção das UCs, é preciso provê-las de conselho gestor, de plano de manejo e realizar sua regularização fundiária. O conselho gestor ajuda a mapear e a conciliar os interesses locais sobre a UC e a construir o plano de manejo. O plano de manejo estabelece o que é permitido fazer dentro da UC, reconhecendo ou designando áreas de uso, bem como as áreas de preservação ambiental. A regularização fundiária permite que o órgão ambiental tenha plena gestão sobre as terras da UC e põe fim aos conflitos por terra que estimulam o desmatamento para fins especulativos. Entretanto, essa ainda não é a realidade da maioria das UCs da Amazônia, segundo revelou um relatório do TCU no final de 2013.
Sem contar com essas condições básicas de gestão, a manutenção e a fiscalização das UCs no bioma Amazônia são realizadas de forma bastante precária. A maioria não tem sede ou um posto de apoio à fiscalização e também não contam um plano de proteção anual. Em âmbito federal, as fiscalizações ocorrem com o planejamento de operações anuais para toda a Amazônia com base em dados do Prodes e Deter. Contudo, por vezes, esse planejamento “macro” deixa de fora UCs críticas, principalmente aquelas menores, cuja área desmatada pode não parecer grande na escala amazônica, mas pode representar um terço ou metade da UC. Em âmbito estadual, a situação é bastante preocupante, pois os Estados possuem menos recursos e também priorizam menos as políticas ambientais. Na maioria das vezes, as fiscalizações só ocorrem se houver denúncias e se houver recursos.
Para alertar governos e órgãos ambientais a respeito do desmatamento nas 50 UCs críticas da Amazônia, nós disponibilizamos seus mapas individuais em alta resolução neste mês de agosto. Eles mostram em que parte da UC o desmatamento ocorreu. Em algumas UCs, percebemos que ele ocorreu em suas bordas. A ausência de marcos e sinalização para informar sobre os limites da UC favorece essa situação. Em outros casos, como em APAs, que permitem ocupação, o desmatamento ocorreu de forma difusa em toda a extensão da UC. Isso reflete a ausência de plano de gestão e de uma fiscalização eficaz.
IHU On-Line - A recomendação do Imazon é de que para evitar o desmatamento, as UCs sejam desenvolvidas localmente. Em que consiste essa proposta?
Elis Araújo - Na verdade, nós temos três recomendações principais, com ênfase na punição de quem desmata e na regularização fundiária das UCs: i) punir todos os crimes associados ao desmatamento (como formação de quadrilha e lavagem de dinheiro), de modo a impor penas mais severas (como vários anos de prisão e confisco de bens) para dissuadir os criminosos; ii) retirar ocupantes não tradicionais das UCs em que sua permanência não é permitida, como Flona, Resex e Rebio; e iii) e retomar terras públicas ocupadas ilegalmente fora das UCs para os reassentamentos necessários.

“A manutenção e a fiscalização das UCs no bioma Amazônia são realizadas de forma bastante precária”

 
IHU On-Line - Quais são as dificuldades de punir crimes associados ao desmatamento ilegal?
Elis Araújo - As dificuldades estão relacionadas à falta de pessoal para as ações de fiscalização e de planejamento. Para punir crimes associados ao desmatamento é preciso um trabalho conjunto e de inteligência, como o realizado pela Operação Castanheira em agosto de 2014, no sul do Pará. O combate a organizações criminosas de forma coordenada entre Ibama, Polícia Federal, Receita Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal foi essencial para o sucesso dessa operação. O resultado foi a prisão de oito acusados por crimes ambientais, financeiros, de sonegação fiscal e de ocupação de terras públicas relacionados ao desmatamento ilegal; além de uma punição mais severa, com penas que podem chegar a 56 anos de prisão, e bloqueio de bens.
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Elis Araújo - Atualmente, os Tribunais de Contas da União e dos Estados da Amazônia Legal estão exigindo que os órgãos ambientais apresentem planos de ação para a implementação das UCs. Nosso trabalho revela quais UCs devem ser priorizadas. Os governos federal e estaduais devem focar suas ações nas áreas críticas de desmatamento, que são as mais pressionadas (em torno de projetos que atraem imigrantes como hidrelétricas e o asfaltamento de estradas) e vulneráveis por causa de ocupações irregulares.
Por Patricia Fachin