terça-feira, 12 de abril de 2011

A LIÇÃO DE JURUTI VELHO

 ARQUIVO

A HISTÓRIA QUE AVATA R CONTA NO CINEMA É VIVIDA PELOS TRADICIONAIS DA AMAZÔNIA


A multinacional mineradora ALCOA, todos os dias, ensina muito aos moradores das margens do Lago Juruti Velho. Ensina sobre o valor do dinheiro. Ensina que o minério vermelho enterrado sob a floresta vale mais do que as areias brancas e as águas azuis que formam a paisagem paradisíaca habitada imemorialmente por Mundurukus e Muirapinimas. Ensina – como um dia já ensinaram os primeiros colonizadores europeus – sobre a importância de eletrodomésticos, tênis americanos e outras quinquilharias. Pacientemente, os tradicionais de Juruti Velho têm ouvido os especialistas contratados pela empresa explicarem que seu modo de vida ancestral é rudimentar, ultrapassado, insustentável.
Realmente, não se pode subestimar a capacidade de aprendizado do caboclo amazônida. Mesmo vivendo na distante fronteira entre os maiores estados brasileiros, nesse afluente do Amazonas em que, há poucos anos, transações monetárias ainda eram raríssimas e onde as necessidades da população sempre foram supridas pelo rio e pela floresta, o povo de Juruti Velho entendeu perfeitamente a lição da ALCOA. Entendeu e contestou. E a gigante multinacional foi obrigada a retribuir a paciência cabocla e ter, ela também, a sua lição.
Primeiro passo de uma vitória: a conquista do território

O mais novo mega-empreendimento minerário da Amazônia instalou-se há cinco anos no município de Juruti, no extremo oeste do Pará, mais precisamente na região conhecida como Juruti Velho, na qual vivem mais de duas mil famílias tradicionais, distribuídas em dezenas de comunidades. A mineradora ALCOA-OMNIA explora, desde o final de 2009, as jazidas de bauxita que se estendem em grandes áreas de florestas, na calha sul do rio Amazonas. Contudo, para que o minério começasse a ser extraído, a empresa foi obrigada a entabular – pela primeira vez na história de empreendimentos desse tipo – uma longa e tensa negociação com a entidade representativa dos moradores da região, obrigando-se, não apenas às compensações sócio-ambientais previstas na legislação, mas ao pagamento de perdas e danos e participação nos resultados da lavra. Um precedente inédito em se tratando exploração de recursos naturais em terras públicas habitadas por população tradicional.

Essa vitória dos povos tradicionais é fruto de um processo iniciado antes mesmo das primeiras prospecções da ALCOA em Juruti Velho, quando as comunidades Mundurukus e Muirapinimas, com participação fundamental das Pastorais católicas ligadas à Prelazia de Óbidos, começaram a se organizar para reivindicar a garantia dos seus territórios ancestrais. Em 2005, o objetivo é parcialmente alcançado, com a decretação do Projeto de Assentamento Agro-Extrativista Juruti Velho, pela recém criada Superintendência Regional do INCRA no Oeste do Pará. Essa modalidade de

* Chefe da Divisão de Desenvolvimento da Superintendência Regional do INCRA no Oeste do Pará.

Projeto de Reforma Agrária, voltada para a garantia de territórios tradicionais (cujo histórico é de apropriação por agentes externos), deu base para a ocorrência de dois fatores fundamentais na luta que se desenrolaria nos próximos anos: a aplicação maciça de políticas públicas pelo governo federal, através do INCRA, e o reconhecimento dos moradores, mediados por suas organizações sociais, como protagonistas políticos inarredáveis.

Bauxita sangrenta: negociação, enfrentamento e a atuação do INCRA

Luciano Brunet, então Superintendente Regional do INCRA e mediador das negociações que precederam a instalação do empreendimento minerário, não cansava de contar a cena que presenciara numa das muitas reuniões entre empresa e moradores: Gerdeonor Pereira, presidente da Associação Comunitária do PAE Juruti Velho (ACORJUVE), ao perceber que um dos Secretários do Governo do Estado havia faltado, antes mesmo do início da reunião, ergue-se e declara “Não há negociação hoje”. Imediatamente, os outros treze membros da diretoria da entidade representativa levantam-se e acompanham o presidente para fora do recinto, deixando, boquiabertos na sala, executivos da ALCOA, Secretários e assessores do Governo do Estado do Pará, diretores de órgãos do Governo Federal, imprensa e demais envolvidos no evento.

Noutra oportunidade, em reunião com a cúpula do governo estadual, vi o principal líder dos Muirapinimas e Mundurukus, sem alterar seu tom de voz, avisar: “Essa bauxita vai sair com sangue. Vai ser bauxita sangrenta.” Gerdeonor alertava que, nos termos em que estava posta a discussão à época, a paciência do povo de Juruti Velho se esgotaria e fatos como a ocupação da mineradora, ocorrida em 2008, se repetiriam. Outro diretor da ACORJUVE, com toda tranqüilidade do mundo, me afirmou: “Nos amarraremos aos trilhos um a um. A cada dia, o trem da ALCOA terá que passar por cima de um de nós pra sair daqui.

Foram muitos enfrentamentos até os representantes dos comunitários serem respeitados como interlocutores principais da negociação. Não era algo habitual que grandes empresas tratassem de seus negócios com moradores de comunidades rurais atingidas pelo empreendimento. O diálogo sempre fora desviado. INCRA, FUNAI e outras instâncias governamentais sempre foram a contraparte, os “representantes” do território afetado, enquanto que a população não passava de um ator secundário, quase um efeito colateral do empreendimento. Mesmo a instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte está sendo conduzida nesses termos. O reconhecimento da ACORJUVE foi construído aos poucos, a partir do trabalho de base das Pastorais, da atuação de assessores jurídicos populares, num processo em que a ação do INCRA foi fundamental.

Superintendente Regional de 2008 ao início de 2010, Luciano Brunet pregava a necessidade de “trabalharmos no sentido de dar musculatura aos movimentos da região”. O caso de Juruti Velho é exemplar. Para que os comunitários pudessem fazer frente às pressões econômicas da ALCOA, o INCRA priorizou a aplicação de políticas públicas no PAE. Enquanto a mineradora acenava com 3 milhões como compensação pelos impactos de sua instalação, a Superintendência Regional destinou, por meio da ACORJUVE, quase 35 milhões, em alimento, instrumentos de trabalho, equipamentos produtivos e habitações. Ao passo que o “trabalho social” da empresa convenientemente apregoa a necessidade de abandonar as “atrasadas” atividades econômicas extrativistas (as quais são extremamente impactadas pela mineração), o INCRA estimula o desenvolvimento de alternativas econômicas baseadas na própria cultura produtiva sustentável dos povos amazônidas e nessa direção são orientadas a Assessoria Técnica e a aplicação dos Créditos.

Todavia, além das ações de desenvolvimento, importante foi a agilidade do INCRA em emitir – vencendo os entraves burocráticos internos – o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) em nome da ARCOJUVE e legitimando-o frente às inúmeras contestações que recebeu. Pela primeira vez um título coletivo foi emitido pelo INCRA, garantindo aos tradicionais, não só o domínio sobre seu território, mas a participação nos resultados da lavra. A Autarquia não estava preparada à época para lidar com situações como essa. O então Superintendente Substituto, Dilton Tapajós, elaborou a minuta de contrato, a qual, mais tarde viria a ser adotada nacionalmente pelo Instituto. Em setembro de 2009, uma vitória fundamental: o governo do Estado do Pará condicionava o licenciamento ambiental do empreendimento à observância dos termos do CCDRU. A mineradora era obrigada a reconhecer os tradicionais como legítimos proprietários daquelas terras.

DESAFIOS DO FUTURO IMEDIATO: MUDANÇAS E DESENVOLVIMENTO

Quanto vale o último olhar para uma paisagem à qual se está costumado desde o nascimento? Quanto vale a perda de laços ancestrais com a natureza? Como se quantifica, como se paga em dinheiro a extinção do modo de vida de um povo? Parece o argumento do filme hollywoodiano Avatar, mas são questionamentos levantados no estudo que visa calcular as perdas e danos da população de Juruti Velho.

Quem já viu o tamanho do desmatamento provocado pela extração de bauxita (“Garimpo é garimpo. Quando acaba, deixa um buraco ”, lembrava um diretor do INCRA durante a ocupação da ALCOA), não acredita no discurso dos engenheiros da multinacional, segundo o qual “em 20 anos, está tudo bem de novo”. A relação entre a população amazônida e a natureza é complexa em sua sustentabilidade. O peixe tirado do rio, o fruto da floresta, o animal caçado, os detritos gerados, as áreas desmatadas, as áreas recuperadas, tudo isso faz parte de um frágil equilíbrio alcançado em centenas de anos de sobrevivência da população tradicional, na preservação e no resgate da cultura indígena ancestral. Essa sustentabilidade ainda não foi alcançada por nenhuma das avançadas técnicas produtivas que tanto a apregoam.

Nessa simbiose homem-floresta estão contidas as relações produtivas e sociais. É um modo de viver cujos valores não encontram uma equivalência monetária tão facilmente. Mas o progresso, a modernização, a civilização são implacáveis. Os grandes empreendimentos – eterna fórmula de desenvolvimento para a Amazônia – estão, irremediavelmente, extinguindo esse modo de vida, como o sistema colonial extinguiu o modo de vida dos povos pré-colombianos.

 Fonte: http://pt.scribd.com/doc/31872274/A-licao-de-Juruti-Velho


FAGNER GARCIA VICENTE*

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